ACUMULADORA

Sabes de cor o que pensavas quando atravessaste a estrada no dia 12 de janeiro às 15h23m. Nunca mais esqueceste o que te disseram à porta da sala 5 depois do clube de teatro do 6º ano. Lembras-te daquela discussão de todas as vezes que pões açúcar no café. Todas. As. Vezes. 

Há quem acumule sapatos, há quem acumule postais ou ímanes de viagens, e tu acumulas pensamentos negativos, que não decoram frigoríficos e não ficam bem nos pés. 

Não há dia que passe que não penses no que pode correr mal, no que pode ser errado. Perdeste conta ao que deixaste de fazer porque podia dar para o torto. E dói a garganta só de pensar em falar alto e deixar os outros ouvir o que pensas, e então guardas e empurras mais fundo o que quer que seja este sentimento, que na verdade nem tu sabes definir.

E um dia percebes que não adianta fechar a porta do armário todas as noites, ou dar duas voltas na chave daquela caixa que colocas debaixo da cama. Há-de haver um momento que a tua casa deixa de comportar mais entulho acumulado, sem que o dividas e faças separação do teu lixo. Essa imundície mental que te atormenta dia após dia, até deixares de conseguir encontrar uma linha de raciocínio livre em que não tenhas de cruzar-te com ela. 

Esse instante é trágico, difícil, e dentro do instante há pequenos fragmentos de tempo em que não sabes se vais ser capaz de desfazer-te do que já não precisas, porque não sabes definir o que não é necessário. Amontoaste sonhos juntos com deceções e conquistas e mágoas e memórias e mentiras que contavas… tudo empilhado no mesmo corredor. Estiveram tanto tempo caídas no chão, que todas têm o mesmo cheiro a sótão, húmido e mofado, mesmo aquelas que antes cheiravam a pastilha elástica de morango e a protetor solar. 

Com uma certa repulsa, vais pegar na primeira memória, bem do fundo da pilha de lixo, e vai ser feia, daquelas que ilustram o pior que já viveste. É sempre essa a primeira em que pegamos. Sempre. É pegajosa, num caderno de capa preta, com as letras tortas e má caligrafia. E olhas para ela sabendo que ela é a primeira que tem de sair.